As Escadarias das Aulas de Anatomia
Todo estudante no dia em que vê seu nome na lista de aprovados no vestibular para Medicina começa a ser atormentado pelo suspense da “Primeira Aula de Anatomia”.
Os Anatômicos (como eram chamadas as salas de aula de anatomia das universidades) costumam ser localizados nos subsolos dos prédios, em lugares pouco habitados, silenciosos, distantes e, mais importante: estão sempre chaveados para inibir a entrada de curiosos.
Ao iniciar meu primeiro semestre da faculdade, soube que a última aula da semana seria a de Anatomia Prática – somente no sábado pela manhã! Porém, ao chegarmos na Universidade na segunda-feira já não aguentávamos e fomos levados pela ansiedade de conhecer o “Anatômico”. Como todo adolescente com a pressa para se tornar “Doutor”, descemos tremendo as escadarias que levavam ao subsolo. Estávamos nervosos e com ouvidos atentos a qualquer barulho. Recordo que o cheiro de formol aumentava à medida que nos aproximávamos do nosso destino. As luzes se tornavam mais fracas. Lembro do coração disparando, uma mão na porta e aquela sensação que permanece gravada em minha memória: “a porta está chaveada!”
Seguiu uma semana de aulas teóricas, jalecos dobrados e luvas sem uso para que pudéssemos sanar nossa curiosidade.
Alguns anos depois li o romance “O Físico” - onde Noah Gordon relata os primórdios da medicina na Pérsia, século I, em que estudar o corpo humano, dissecá-lo após a morte, era considerado uma violação que levava a pena de morte. Naquelas páginas retornei no tempo e finalmente compreendi as emoções das escadarias do anatômico. Entendi o medo indescritível dos personagens de, na calada da noite, roubar um corpo e poder descobrir a causa da ¨Dor do Lado¨ - uma simples apendicite - que levava a morte rapidamente aos pacientes acometidos.
Aquele sábado agora em minha memória está mais claro: estávamos nós entrando nas catacumbas da Pérsia antiga e finalmente iríamos vestir nossos jalecos e luvas. Nossas almas seculares iriam finalmente iniciar sua jornada médica da forma que deve ser desde o tempo de Avicena: em contato com a frieza da morte, aprendendo a respeitá-la e a temê-la.